Prefácio de Josefo

Tendo me determinado escrever, para mostrar que a razão, acom panhada pela virtude e pela piedade, domina as paixões, peço a atenção de todos os que lerem o que se segue. O assunto o merece, pois nos é muito importante sabermos que a razão nos fornece armas para ven­cer, pela temperança, a gula e a impureza; pela justiça, a injustiça e a malícia, e pela generosidade, a covardia e o temor.

Mas, dir-se-á, se a razão domina as paixões, por que não se torna ela também senhora da ignorância e do olvido? Esta questão é de pouca importância. Pois o juízo não pode vencer os defeitos, que se encontram em si mesmo, embora sobrepuje pela razão as paixões contrárias à temperança, à justiça e à generosi­dade e a razão não as domina, destruindo-as, mas não se conformando com elas.

Ser-me-ia fácil mostrar por meio de vários exemplos que é muito verdade que ela domina as paixões. Mas nada pode provar mais claramente que a constância invencível com que Eleazar, sete irmãos e sua virtuosa mãe, por meio de ações heróicas de virtude, deram suas vidas pela defesa da própria fé e mostram até o último respiro pelo desprezo dos tormentos mais horríveis, que a razão, quando é acompanhada pela virtude e pela piedade, domina as paixões. Contentar-me-ei, portanto, de relatar essa história, pois que a coragem e a paciência desses genero­sos mártires não somente foram admirados por testemunhas de seu suplício, mas por seus próprios algozes; e tendo vencido por sua constância a crueldade de um príncipe tão cheio de furor, seu sofrimento trouxe tranqüilidade para sua pátria.

Vou, porém, retomar meu primeiro discurso, para dar a glória que é devida à sabedoria infinita de Deus. Trata-se então de saber: se a razão é senhora das paixões; o que é a razão, o que são as paixões, qual a diferença entre elas e se a razão domina a todas.

A razão outra coisa não é que a justeza do espírito unida a uma sabedoria que nos serve de regra em nosso proceder e em nossas ações. A sabedoria consiste no conhecimento das coisas divinas e humanas. Esse conhecimento mesmo nos dá a compreensão de nossa lei, nos ensina a reverenciar a Deus, nos instrui sobre o que é útil ao bem geral de todos os homens. A temperança, a justiça, a prudên­cia e a generosidade são efeitos dessa sabedoria, mas a prudência eleva-se acima das outras e é por ela que a razão domina as paixões. Entre essas paixões há duas que compreendem todas as demais: o prazer e a dor; embora pertençam ao corpo, ele não as abriga, que por causa de sua relação com a alma, que, por seu lado, também tem seu prazer e sua dor. Outras paixões acompanham estas. O desejo precede o prazer e a alegria o segue. O temor precede a dor e a tristeza a segue; a cólera é uma paixão que se refere ao prazer e à dor. Ela nos leva a destruir o que nos priva de algum prazer e nos irrita contra o que nos causa dor.

Quando a voluptuosidade chega a se tornar um mau hábito, causa diversas paixões espirituais e corporais. O espírito deixa-se levar à vaidade, à ambição, à inveja, à teimosia, e o corpo aos excessos da boca. Essas más plantas produzem vários rebentos que a razão, como um sábio jardineiro corrige e corta, como sendo guia das virtudes e senhora das paixões. Começa por reprimir as que são contrárias à temperança, combate os maus desejos, quer espirituais, quer corpo­rais, e vence a uns e outros; é por ela que nos abstemos de comer coisas que a lei proíbe e nos moderamos nas de que nos permite o uso, por mais repugnância que o corpo sinta; tanto é verdade que seus movimentos desregrados são repri­midos pela temperança, que a razão nos torna amável.

Poderíamos nos admirar de que essa mesma razão tenha também o poder de vencer as mais violentas paixões da alma, e apagar o fogo que o amor da beleza acende? Quem, entretanto, pode duvidar de que ela não opere com esse poder, pois, não louvaríamos tanto a castidade de José, se no ardor de sua juventude ela não lhe tivesse feito dominar os atrativos da voluptuosidade?

A razão não apenas vence as paixões agradáveis, mas de todas ela sai vence­dora: Por isso a lei diz: Não desejareis a mulher do próximo nem algo que lhe pertença. Como a lei nos proíbe desejar, não é claro que ela nos julga capazes de vencer nossos desejos e as paixões que são contrárias à justiça? Do mesmo modo, se a razão não dominasse as paixões, como os que são levados à gula poder-se-iam corrigir desse vício? Como aqueles que naturalmente são avarentos poder-se-iam resolver a emprestar sem juros? Mas lembrando-se de que a lei proíbe a usura e todos os outros ganhos ilícitos, eles reprimem pela razão o desejo do lucro. Podemos julgar do mesmo modo nas outras coisas que a lei determina que a razão domina as paixões. Assim, por maior respeito que tenhamos por nossos pais, a obrigação de obedecermos à lei impede-nos que façamos algo para agradá-los, contrário à virtude; por maior amor que tenhamos para nossas esposas não deixamos de repreendê-las por seus defeitos; por maior ternura que sintamos por nossos filhos, ela não nos impede castigá-los para corrigi-los de suas faltas; por mais amizade que tenhamos por nossos amigos, não deixamos de censurá-los quando fazem o mal; e o que é ainda mais difícil, não somente nos não vingamos de nossos inimigos, nem lhes cortamos as árvores frutíferas, mas se encontramos o que eles perderam nós lhes restituímos, e não lhes recusamos nosso auxílio em suas necessidades, como por exemplo, ajudando-os a levantar os animais nalguma queda.

A razão torna-se assim senhora das paixões, até das mais violentas, como a ambição, a vaidade, a inveja e o ódio. Por isso Jacó, nosso pai, cuja bondade e sabedoria não podemos estimar assaz, repreendeu severamente a Simeão e Levi pela matança que haviam feito entre os siquemitas, dizendo: “Que vossa cólera e furor, por que vos deixastes levar, sejam malditos”. Como poderia ter ele falado desse modo se a razão não tivesse sobrepujado em seu coração o ressentimento pelo ultraje feito à sua filha?

Quando Deus, criando o homem, com uma só palavra, deu-lhe o livre-arbí-trio, rodeou-o e o revestiu de diversas paixões, colocou seu espírito sobre um trono, para dominá-las e deu-lhe depois leis, por meio das quais ele poderia fazê-lo e outrossim reinar sobre elas a temperança, a bondade e a justiça. Como então poder-se-ia dizer: se a razão é senhora das paixões, por que não é também dominadora da ignorância e do olvido? Essa pergunta não é extravagante, pois é evidente que o entendimento que forma nossa razão não pode, como eu disse, ser vitorioso sobre si mesmo, mas somente sobre as paixões? Podemos ter más inclinações, mas a razão nos dá força de vencê-las. Nós não poderíamos não ter desejos, mas a razão pode nos impedir de segui-los. Nós não poderíamos deixar de ser movidos pela cólera, mas a razão pode nos conter, para não nos deixar­mos levar por ela. Nós não poderíamos nos despojar de nossas paixões, mas a razão pode resistir-lhes. Davi disso nos dá um belo exemplo: Depois de ter, du­rante todo o dia perseguido os inimigos, matou um grande número deles, voltou à noite para sua tenda, cansadíssimo e com muita sede. Todos os seus puseram-se a comer e por mais ardente que fosse a sede e embora houvesse ali fontes e nascentes, ele não quis beber porque estava resolvido a matar a sede com a água de uma fonte que ainda estava em poder dos inimigos. Três daqueles valorosos oficiais, que jamais o abandonavam, comovidos por vê-lo sofrer tanto e sabendo do seu desejo, tomaram as armas e um vaso, atravessaram as defesas do inimigo e sem que os guardas percebessem, passaram pelo seu acampamento, chega­ram à fonte, encheram o vaso e o trouxeram ao seu rei. Então, embora o grande rei ardesse de sede, julgou não poder, sem impiedade, beber de uma água que ele considerava como sendo o mesmo sangue, porque aqueles que a tinham trazido tinham se exposto para consegui-la, ao risco de perder a vida. Assim resistindo pela razão ao seu desejo, ele a derramou e ofereceu a Deus. Vê-se, pois, por estas palavras, que não há paixão que a razão não possa dominar, nenhum ardor que ela não seja capaz de extinguir, nenhuma dor que ela não tenha a força de superar e nenhuma luta de paixões de que não seja vitoriosa.

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