Capítulo 9 – Os antigos habitantes de Alexandria servem-se da oportunidade do furor de Caio contra os judeus para lhes fazer todos os ultrajes, todas as insolências e todas as ações de crueldade imagináveis. Destróem a maior parte dos seus oratórios e lá colocam as estátuas do príncipe, embora jamais se tivesse feito algo de semelhante sob Augusto nem sob Tibério. Louvor e elogio de Augusto.

Quando o ódio desse imperador contra os judeus chegou ao conhecimento dos habitantes de Alexandria, que já há muitos anos também os odiavam, eles julgaram não poder encontrar uma ocasião mais favorável de fazê-los explodir. Assim, como se tivessem recebido ordem desse príncipe, ou como tendo sido atacados pelos judeus, o direito da guerra os expunha à sua cólera, assaltaram-lhes as casas, delas os expulsaram com suas famílias, saquearam-nas, levaram tudo o que havia de melhor, não de noite, como os ladrões, que temem o casti­go, mas em pleno dia, fazendo alarde, como se aquilo lhes pertencesse, ou o tivessem comprado e alguns mesmo, por uma detestável sociedade em ações, tão criminosos, dividiam entre si o roubo nas praças públicas na presença daque­les que eles tinham tão cruelmente despojado de seus bens e acrescentavam ainda a zombaria e as injúrias à violência que lhes tinham feito.

Mas, que é ter reduzido à indigência pessoas antes ricas, tê-las feito sair de suas casas e se exporem como vagabundos às inclemências do tempo, em com­paração com o que aconteceu em seguida? Aqueles homens furiosos expulsaram os judeus com suas esposas e filhos de todos os pontos da cidade para encurralá-los como animais em um lugar tão apertado, que eles não podiam nem sequer levar alguma coisa consigo, e todos pensavam que logo eles viessem a morrer de fome ou infeccionados pelo ar, cuja pureza é tão necessária para a vida, pior causa do calor interno, que é como acrescentar fogo ao fogo e não dar aos pulmões, em vez de um ar suave e temperado, que refresca, um ar aquecido por uma tão grande quantidade de pessoas apertadas umas contra as outras.

Em tal conjuntura, esses pobres infelizes para poder pelo menos respirar, retiravam-se uns para o deserto, outros para as proximidades do mar e outros para os sepulcros. Aqueles que ainda restavam nalgum lugar da cidade ou que vinham de fora, sem saber do que se estava passando, eram recebidos a pedradas ou a pauladas e os trata­vam do mesmo modo que aqueles que já estavam encerrados naqueles lugares pe­quenos demais para tão grande multidão. Esses cruéis perseguidores iam esperar nas margens do rio os negociantes judeus que vinham fazer transações em Alexandria, roubavam-lhes toda a mercadoria e os queimavam vivos, uns na fogueira, que acendi­am com lenha tirada dos navios e outros no meio da cidade de maneira ainda mais cruel, porque esse fogo era feito com lenha muito úmida, produzia muito mais fumaça do que chamas. Arrastavam a outros com cordas pelas ruas e praças públicas e se enfureciam de tal modo contra eles, que sua morte não lhes satisfazia à raiva e eles ainda os pisavam, despedaçavam-lhes os corpos, de modo que nada restava para ser sepultado, quando mesmo se lhes tivesse querido prestar aquele serviço.

Quando eles viram que o intendente da província, que teria podido acalmar num momento tão grande agitação, a autorizava fingindo ignorá-la, eles se tornaram ainda mais atrevidos e mais insolentes. Reuniram-se em grupos, foram em massa aos oratórios que existiam em grande número em várias partes da cidade, cortaram as árvores da vizinhança, destruíram completamente alguns desses oratórios, e incen­diaram outros, cujo fogo destruiu também as casas das adjacências; esses incêndios destruíram os escudos e as estátuas douradas, com as inscrições com que os impera­dores tinham honrado a virtude dos judeus e que deviam ser respeitadas. Nada, porém, era capaz de conter aqueles alucinados, porque em vez de temer um casti­go, eles sabiam que a raiva de Caio contra os judeus era tão grande, que nada lhe era mais agradável do que vê-los tratados com tão espantosa crueldade.

Para conquistar ainda mais as boas graças do soberano com novas adulações, e oprimir-nos ainda mais seguramente para subverter sem receio nossas leis, eles colocavam suas estátuas nos nossos oratórios, quando não os podiam destruir, porque o grande número de judeus lhes impedia; a que colocaram no principal desses oratórios estava colocada sobre um carro puxado por quatro cavalos de bronze. Nisso procederam com tanto ardor, que não tendo cavalos recém-fundi-dos, foram buscar nos lugares de exercício alguns, todo estropiados, que se dizia terem sido feitos outrora para a rainha Cleópatra, última desse nome. Isso deveria ter ofendido a Caio, em vez de contentá-lo, pois significava honras extraordinárias; mas quando mesmo esses cavalos tivessem sido feitos recentemente, o terem ser­vido para honrar a uma mulher, os tornava indignos dele e se tivessem sido feitos para ele, eram demasiado imperfeitos para lhe serem agradáveis. Mas eles julga­vam merecer muito dele, mudando esses oratórios em templos para aumentar o número dos que lhes eram dedicados, embora não o fizessem tanto pelo desejo de lhe prestar essa homenagem, como pelo extremo ódio contra nossa nação. Não é necessário melhor prova do que durante trezentos anos do reinado de dez de seus reis, eles não lhes consagraram estátuas naquelas capelas, embora os colocassem no número de seus deuses e lhes dessem o nome. Mas haverá motivo de admira­ção de que, embora eles soubessem com certeza que eram apenas homens, eles os colocassem no número de seus deuses, pois adoravam cães, lobos, leões, crocodi­los e vários outros animais, tanto terrestres como aquáticos e aves, e todo o Egito está cheio de Templos, de altares e de bosques consagrados à sua honra?

Mas, como jamais houve maiores aduladores e eles consideram muito mais a fortuna que a pessoa dos príncipes, eles responderão que talvez o poder e a prosperidade dos imperadores romanos sobrepujam de muito a dos Ptolomeus, e portan­to, era prestarem-se-lhes as maiores honras. Que resposta pode ser mais ridícula? Por que eles não prestaram honras semelhantes a Tibério, ao qual Caio é devedor do império, pois que esse príncipe reinou durante vinte e três anos com tanta prudência e felicidade, que manteve até à morte não somente as províncias gregas, mas as bárbaras, em profunda paz e as fez gozar de toda espécie de bens? Era talvez sua origem inferior à de Caio? Não a sobrepujava, talvez, tanto do lado paterno como do materno? Era-lhe ele inferior em erudição? Que outro foi no seu tempo mais hábil e mais eloqüente? Não tinha ele bastante idade e portanto bastante experiência? Que outro imperador terminou seus dias em tão venturosa velhice e não se viu com admiração que mesmo na sua juventude ele já tinha a capacidade que de ordinário se adquire depois de um grande número de anos? Entretanto, vós não julgastes que ele merecia que lhe prestásseis a mesma honra.

Que direi também desse admirável príncipe que parece se ter elevado, pela grandeza de suas virtudes, acima da condição dos homens, que pela multidão de seus benefícios e a felicidade de seu reinado mereceu por primeiro o glorioso título de Augusto e sem tê-lo recebido de nenhum outro o transmitiu aos seus sucessores? As terras opunham-se aos mares e os mares, às terras: a Europa armada contra a Ásia, e a Ásia contra a Europa. Todos os grandes do império estavam divididos para ver quem seria o senhor e podemos dizer que a raça dos homens estava prestes a perecer por essa sangrenta e cruel guerra acesa ao mesmo tempo em todos os lugares do mundo, quando em tão horrível tem­pestade esse grande príncipe tomou nas mãos o leme, restituiu a calma toda a terra, estabeleceu a abundância por meio do comércio, amenizou os costumes das nações mais bárbaras, que podiam passar por livres, conservou a paz, fez reinar a justiça e jamais deixou de espalhar a mãos-cheias favores sobre todos os povos, até o fim da vida. Esse incomparável benfeitor viu durante quarenta e três anos o Egito sujeito ao seu império, sem que lhe tenhais prestado a mesma honra que a Caio, nem colocado sua estátua em nenhum dos oratórios dos judeus, embora nenhum outro príncipe merecesse mais do que ele ser reverenciado de maneira extraordinária, não somente porque ele é o autor da augusta família imperial, mas porque tendo reunido nele esse soberano po­der, antes dividido e tendo dele usado com tanta moderação, ele cuidou da felicidade pública, nada havendo de mais verdadeiro do que estas palavras de um antigo: “O governo de vários é perigoso, por causa dos males que produz a diversidade de seus sentimentos”. O exemplo dos outros povos a isso vos devia mesmo obrigar, pois que de todas as partes lhe foram prestadas honras divinas e em diversos lugares lhe foram consagrados Templos, tão grandiosos que não podemos encontrar outros semelhan­tes em parte alguma, particularmente na nossa Alexandria, tanto antigos como mo­dernos, que os igualem? Pois, que outro é comparável ao que traz por sua causa o nome de Sebaste, construído perto do porto e tão reverenciado por aqueles que nave­gam? É tão espaçoso e tão elevado que pode ser visto de muito longe: está todo cheio de admiráveis estátuas e quadros, bem como de outros presentes enriquecidos de ouro e prata que lhe foram oferecidos; nada se pode ver de mais magnífico do que seus pórticos, seus vestíbulos, suas galerias, suas bibliotecas e nada de mais belo que seus bois sagrados. Nesse concurso geral de todos os povos haverá algum homem de bom senso que possa dizer que não se dava toda a honra devida a Augusto, sem colocar suas estátuas nos oratórios dos judeus? Não, sem dúvida; mas o que impediu que isso se fizesse foi que se sabia que aquele admirável príncipe via com não menor prazer que cada qual vivesse segundo as leis do seu país, ao que ele tinha cuidado em fazer observar as leis romanas, e que as honras que lhe prestavam aqueles cegos adoradores não eram por ele aprovadas, mas ele julgava que assim contribuíam para erguer ainda mais a grandeza e a majestade do império. Quem melhor pode manifes­tar que ele não se deixou arrebatar, nem transportar pela vaidade, por aquelas reverên­cias excessivas, que jamais quis tolerar que se lhe desse o nome de deus e de senhor? E não somente rejeitou aquela adulação, mas demonstrou reprovar o horror que nossa nação tinha por coisas semelhantes? Do contrário, como teria ele permitido que ju­deus, dos quais a maior parte tinha sido libertada pelos senhores, sob o poder dos quais a sorte das armas os havia reduzido, tivessem ocupado em Roma aquela grande parte da cidade que está além do Tibre? Ele não ignorava que tinham oratórios onde se reuniam para orar e principalmente no dia de sábado; que eles arrecadavam as déci­mas para mandá-las a Jerusalém e faziam oferecer sacrifícios. Entretanto, não os expul­sou de Roma e estava tão longe de lhes querer abolir a religião, suas leis e seus costu­mes, que ele fez ricos presentes ao nosso Templo e ordenou que lá se imolassem todos os dias em holocausto, vítimas ao Deus Todo-poderoso: o que se faz ainda hoje, sempre se há de observar e será para sempre um sinal da virtude desse incomparável imperador. Ele quis também que os judeus fossem incluídos na distribuição pública de dinheiros e de trigo, que se fazia ao povo em certos meses; se caísse ela em dia de sábado, nos quais não lhes é permitido agir, nem receber alguma coisa, principalmente para sua utilidade, punham-lhes a porção de lado, para que a recebessem no dia seguinte. O que os torna­va tão importantes entre as outras nações que ainda naturalmente elas não lhes fossem favoráveis, não ousavam perturbá-los na observância de suas leis.

Tibério tratou-os do mesmo modo que Augusto, embora Sejam tudo fizesse para procurar perdê-lo por meio de calúnias, especialmente os que moravam em Roma, porque ele sabia que eles eram incapazes de entrar em sua detestável conjuração contra seu senhor; o soberano ordenou em seguida a todos os governadores das províncias que exceto alguns em número muito pequeno, que tinham entrado nes­sa conjuração, tratassem bem a todos os outros, sem obrigá-los a alguma modifica­ção em seus costumes, porque eles eram naturalmente inclinados à paz e nada faziam em suas leis nem em seus costumes de contrário à tranqüilidade pública.

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