Capítulo 6 – Resposta ao que Lisímaco, Apolônio Molom e alguns outros disseram contra Moisés. Josefo mostra como esse admirável legislador sobrepujou a todos os outros e que nenhuma outra lei jamais foi tão santa nem tão religiosamente observada como as que ele nos deu.

Mas, como Lisímaco, Apolônio Molom e alguns outros por ignorância e por malícia quiseram fazer crer que Moisés, nosso legislador, era um sedutor e um mago e que as leis que ele nos legou só têm maldade e perigo, julgo-me obri­gado a provar e a mostrar qual o nosso proceder em geral e nossa maneira de viver, em particular; espero que todos possam sabê-lo e que nada se pode acrescentar às nossas santas leis, quer no que se refere à piedade, quer à sociedade civil, à caridade, à justiça, à paciência no sofrimento, e ao desprezo da morte. Rogo aos que as lerem que não se deixem levar pelo desejo de encontrar o que censurar; este pedido é tanto mais razoável, quanto meu intento não é esten­der-me sobre elogios de nossa nação, mas somente justificá-la nas coisas de que a acusam tão falsamente.

Não é por simples palavras continuadas, como as de Ápio, que Molom fala contra nós; ele espalhou suas calúnias por diversos lugares de sua obra. Ora nos trata de ateus e de inimigos de todos os homens, ora censura nossa timidez, ora nos acusa de sermos ousados. Diz em outros pontos que nós somos mais brutais que os bárbaros, e que assim ninguém se deve admirar de que nada tenhamos inventado de útil para a vida. Nada é mais fácil que confundir tanta impostura, pois não há outra coisa a se fazer, que ler as nossas leis, para se saber que elas ordenam justamente o contrário do que ele afirma e todos sabem que nós as observamos mui religiosamente. Se para justificar a pureza de nossas cerimônias eu sou obrigado a falar das de outras nações, devemos nos ater aos que se esfor­çam para fazer crer que as nossas lhes são muito inferiores.

Tudo o que esse autor e os outros dizem contra nós reduz-se a dois pontos: que nossas leis não são boas, das quais, porém, somente o resumo que eu apre­sentarei mostrará o contrário, e que nós não as observamos. Para responder a essas objeções devemos tomar o assunto um pouco mais atrás. Eu digo, pois, que aqueles que por seu amor pelo bem público estabeleceram leis para o regi­mento dos costumes são muito mais estimáveis do que os que vivem sem ordem e disciplina. Assim, todos devem conformar-se com as mesmas, não fazer novas leis, pela vaidade de passar por criadores e não por imitadores. O dever do legis­lador consiste em não ordenar que não seja justo, e cujo uso seja útil aos que observam as causas preceituadas; vice-versa o dever dos povos consiste em ja­mais se afastar delas, nem na prosperidade nem na adversidade.

Ora, eu digo que nosso legislador, em antigüidade, precede a Licurgo, a Sólon, a Zaleuco de Locres e a outros, tanto amigos como modernos de quem os gregos tanto se ufanam de que o nome de lei entre eles não era conhecido outrora, como parece, pois Homero nunca o usou. Os povos eram governados por máximas e ordens dos reis, das quais se usavam, segundo a oportunidade, sem que algo hou­vesse escrito. Mas nosso legislador, que aqueles mesmos que falam contra nós não podem negar ser muito antigo, mostrou que ele era um guia provecto de um grande povo, porque depois de lhe ter dado excelentes leis, ele o persuadiu a recebê-las e observá-las inviolavelmente. Vejamos, pela grandeza de seus feitos, quem ele foi. Nossos antepassados, que se haviam multiplicado excessivamente no Egito, gemi­am sob o jugo de uma servidão insuportável; ele não somente lhes serviu de chefe, para de lá retirá-los e levá-los à terra que Deus lhes tinha prometido, mas salvou-os por sua grande prudência de inúmeros perigos. Tiveram que atravessar desertos sem água e sustentar diversos combates para defender suas esposas, seus filhos e seus bens. Tiveram-no em tantas dificuldades como excelente general, guia muito sábio e protetor incomparável. Embora persuadisse tudo o que queria àquela grande mul­tidão e ela lhe fosse muito submissa, jamais ele foi tentado pelo desejo de dominar; mas, ao contrário, quando todos os outros aspiram à tirania e soltam as rédeas ao povo, para que viva na desordem, em vez de abusar de sua autoridade, ele só pen­sou em caminhar na sua presença e no temor de Deus, em incitar o povo à piedade e à justiça, em fortalecê-lo com seu exemplo e garantir-lhe a tranqüilidade. Tão santo proceder e tão grandes feitos nos não levam a acreditar que Deus era o oráculo que ele consultava e que, estando persuadido de que devia em todas as coisas con­formar-se com a sua vontade, tudo ele fazia para inspirar esse mesmo sentimento ao povo, de que tinham o governo? Nada é tão capaz de impedir que os homens caiam no pecado do que a crença de que Deus tem os olhos abertos sobre todas as suas ações? Eis o que foi o nosso legislador, não um sedutor, como imaginam esses auto­res, mas semelhante a Minos e àqueles outros legisladores, de que os gregos se vangloriam. Minos dizia que tinha recebido suas leis de Apoio, cujo oráculo tinha consultado em Delfos; os outros diziam tê-las recebido de outras divindades, quer o acreditassem deveras, quer quisessem inculcá-lo ao povo. Mas é fácil julgarmos pela comparação dessas leis, quais as mais santas e quais os legisladores que tiveram um conhecimento mais particular de Deus. É o que nos falta examinar.

As diversas nações que existem no mundo governam-se de maneiras diferen­tes: umas abraçam a monarquia; outras, a aristocracia; outras, a democracia. Mas nosso divino legislador não estabeleceu nenhuma dessas espécies de gover­no. Escolheu uma república, à qual podemos dar o nome de Teocracia, pois que a fez inteiramente dependente de Deus e ao qual nós consideramos como o único autor de todo bem, que prove às necessidades gerais de todos os homens. Só a Ele recorremos em nossas aflições e estamos persuadidos de que não so­mente todas as nossas ações lhe são conhecidas, mas de que penetra mesmo todos os nossos pensamentos.

Os outros legisladores ensinaram que há um só Deus, monarca Todo-poderoso; mas misturam com essa verdade, diversas fábulas, reconhecendo outras divindades, que são incapazes de compreender as suas orações e conhecer suas necessidades, seus pensamentos e suas ações. Moisés, ao contrário, declara que há somente um Deus perfeitamente bom e sempre pronto a nos escutar, Incriado, Imortal, Eterno, Imutável, que sobrepuja em beleza a todas as criaturas e que somente nos é conhe­cido mediante seu poder e cuja essência nos é desconhecida. Os mais sábios e os mais sensatos dos gregos parecem ter tido essa idéia de Deus, tendo, como eu já disse, falado dEle como de um monarca, o que exclui a pluralidade de deuses e de uma maneira conveniente, à sua suprema majestade, chamado a um princípio sem princípio e elevado acima de todas as coisas. Pitágoras, Anaxágoras, Platão e outros estóicos, e quase todas as outras seitas, tiveram essa crença de Deus, mas não ousa­ram professá-la abertamente, por causa das superstições de que o povo estava pos­suído. Nosso legislados foi o único cujas ações e palavras foram conformes. Ele não somente instruiu os seus contemporâneos nessas santas verdades, mas fez que seus descendentes conservassem fielmente a mesma crença e nada fosse capaz de os abalar em sua fé, porque ele só deu leis que eram úteis a todos e não se contentando de lhes ensinar a adoração que deviam a Deus, ensinou-lhes também que uma parte de seu culto consiste em praticar as virtudes, como a justiça, a fortaleza, a temperan­ça e a viver numa estreita união uns com os outros. Assim, nada lhes ordenou que não se referisse a Deus e que não tendesse a uma verdadeira piedade. Ele os instruiu a respeito de tudo o que concerne à religião e aos costumes e uniu a prática à teoria, ao passo que os outros legisladores, tomando um desses dois caminhos, que aprova­ram e preferiram, deixaram o outro. Os lacedemônios e os candiotas não se serviam de palavras, mas somente de exemplos; os atenienses e quase todos os outros gre­gos contentavam-se em fazer leis e dar preceitos, sem se incomodar em fazê-los observarem. Nosso legislador, ao contrário, jamais separa essas duas coisas. Tudo ele fez do que pode servir para formar os costumes e cuidou de tudo por meio das leis que nos deu. Determinou até as mínimas coisas que nos é permitido comer e com quem as podemos comer. Fez do mesmo modo que se refere às obras, ao trabalho e ao descanso, a fim de que, vivendo sujeitos à lei como a um pai de família ou a um senhor, não pudéssemos faltar por ignorância. E para termos desculpas se faltásse­mos à observância dessas santas leis, ele não se contentou de nos obrigar a ouvir, lê-las uma vez, duas vezes, ou diversas vezes: mas ordenou que num dia da semana nos abstivéssemos de toda espécie de trabalho, para somente, sem distração, ouvi-las e mesmo aprendê-las, o que nenhum outro legislador jamais fez. Vemos também en­tre as outras nações que a maior parte não somente não vive segundo as leis estabelecidas, mas as ignora quase completamente e só sabe que faltou a elas quan­do é advertido, o que faz que as pessoas mais ilustres em dignidade tenham junto de si outras pessoas que são dotadas de uma inteligência particular; ao passo que se interrogarmos os nossos a esse respeito, veremos que todos são tão instruídos nas leis, que seu próprio nome não lhes é mais conhecido. Nós as aprendemos desde a infância, gravamo-las em nosso espírito, a elas faltamos raramente e não as deixa­mos de observar sem sofrer logo o castigo. Esse conhecimento produz também entre nós uma admirável união porque nada é tão capaz de a fazer nascer e conser­var do que os mesmos sentimentos da grandeza de Deus, a mesma orientação na maneira de viver e os mesmos costumes; não se ouve entre nós falar diversamente de Deus, como acontece com os outros povos, não somente entre pessoas do povo, que dizem ao acaso o que lhes vem à mente, mas entre os filósofos. Uns querem fazer crer que não existe Deus; outros, sustentam que sua providência não vela pelos homens nem estabelece entre eles diferença alguma e que todas as coisas lhes são comuns. Nós cremos, ao contrário, que Deus vê tudo o que se passa no mundo. Nossas mulheres e nossos servos disso estão persuadidos como nós; podemos ouvir de suas bocas as regras do proceder de nossa vida e eles sabem que todas nossas ações devem ter por objeto agradar a Deus.

Quanto ao que se nos censura, como um grande defeito, de não procurarmos inventar coisas novas, quer nas artes, quer nas línguas, quando os outros povos merecem elogios porque apresentam sempre novidades, nós atribuímos, ao invés, a causa disso à virtude e à prudência de permanecermos constantemente na obser­vância de nossas leis e dos costumes de nossos antepassados, porque é uma prova de que foram feitos com perfeição, pois somente os que não têm essa vantagem é que devem ser modificados quando a experiência mostra a necessidade de se lhe corrigirem os defeitos. Assim, como não duvidamos de que foi Deus que nos deu essas leis, por intermédio de Moisés, poderíamos sem impiedade não nos esforçar­mos por observá-las mui religiosamente? Que normas podem ser mais justas, mais excelentes e mais santas do que as de que esse soberano monarca do universo é o autor, do que esse proceder admirável que atribui a todos os sacerdotes em comum a administração das coisas santas e ao sumo sacerdote a autoridade sobre os outros, para que todos desempenhem com tanto desinteresse e pureza um ministério divi­no, que eles desprezam as riquezas e se elevam por sua virtude acima dos afetos que corrompem o espírito dos homens? São eles que velam com um contínuo cuidado pela observância das leis e a manutenção da disciplina: eles são juizes nas questões e ordenam o castigo dos culpados. Que forma de governo pode ser então mais perfei­ta que a nossa, que maiores honras pode dar a Deus, pois que estamos sempre preparados a cumprir o culto que lhe devemos e pelo qual nossos sacerdotes foram constituídos para velar sem cessar, para que nada se faça que lhe seja contrário, e para que todas as coisas sejam mais bem organizadas num dia de festa solene, do que o são sempre, entre nós? Mal as outras nações observam durante alguns dias as cerimônias às quais dão o nome de mistérios e nós, ao contrario, jamais a elas falta­mos há tantos séculos, nem deixamos de praticar com alegria todas as nossas.

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